Pink money, Parte I

O cenário é uma grande livraria da cidade de Salvador. Público certo, cotidiano, agitado e diverso dentro de quem pode frequentar aquele tipo de estabelecimento.  Gente apressada, gente com tempo, gente correndo atrás de presentes ou de entretenimento. Pessoalmente, nada a fazer por ali exceto esperar pelas compras da minha carona – e ler alguma coisa de passagem.

Sem muita paciência pra livros amplos ou difíceis, passeio muito pra lá e pra cá. Passo na parte de história, claro, quando vejo uma pequena prateleira com livros de temáticas GLS. Tremenda surpresa, naquele canto esquecido na livraria (que parece bem ordenada: bestselers > literatura > filosofia > história > GLS, entre filosofia e história). Folheio muito interessado os livros. Bastante literatura picante, alguns livros informativos. Algo de psicologia, e um livro com esquetes do Tom of Finland. Um rapaz ao meu lado olha num tom meio especulativo para mim, talvez chocado ou estimulado com a capa do livro.

Mas a questão que fica mais ou menos incômoda pelo resto do dia é esta: porque este lugar na livraria? Porque tão escondida? Porque aquele tipo de literatura? Porque tantos autores homossexuais e gays, ou com trabalhos nesta temática – fico apenas com Wilde ou Kenneth J Dover que não estão por lá – não tem espaço nesta pequena prateleira? Ou, posto de outra forma, que tipo de lógica governa esta ordem dos espaços dentro de uma livraria?

Neste caso, alguns pontos parecem bastante claros. Um, é inegavelmente um passo a frente colocar uma prateleira de temática GLS/LGBTT numa grande livraria. Dois: autores consagrados ou acadêmicos que tenham temática homossexual não entram nestas prateleiras. São relegados a lugares mais visíveis. Mesmo quando o livro desenvolve uma análise sobre a homossexualidade, parece existir algum tipo de segregação. Como se apenas quando a temática gay fosse um rótulo irremovível (sem chances para “literatura”, ou “história”) é que deva ser colocado naquela prateleira. Terceiro, o local é bem particular. Entre história e filosofia, dentro do campo das humanidades. Pouca produção? Pouca procura? Um pouco dos dois, talvez? Respostas em aberto.

Em tempos onde o Pink Money começa a interessar empresários no Brasil, pouco me admira que as pessoas tentem surfar nesta onda, lucrando poderosamente com o jogo das identidades no presente. Os elementos que podem ser significados como partes do pertencimento determinado ideal – marcas de cuecas, sungas, óculos, tipos de música e em menor grau literatura e cinema – também integram este jogo. Neste meio tempo, a visibilidade pode vir de duas “raízes”, por assim dizer. Uma delas é a da tolerância pragmática, devido ao dinheiro. Comprar a leniência, silêncio ou assentimento do outro, por assim dizer. A outra talvez tenha origem numa aceitação da diversidade – onde o particular integra, questiona e transforma o modelo. Acharia pobre estar num relacionamento com um gay machista. Também acho pobre privilegiar produtos que reproduzam pura e simplesmente estereótipos – como o machismo da frase anterior. Ambas podem ser encontradas, creio, no Pink Money – ou em prateleiras de produtos direcionados.

Mas há mais. Não estou defendendo a supercompartimentalização. Eu não compraria um livro ou objeto somente porque seu autor é gay. Nem acho que todos os produtos elaborados com esta temática devem estar dentro da prateleira GLS da livraria (ou da caixinha)… Mas gostaria que a divisão não fosse de tantos extremos, entre o tudo e o quase nada. Claro, num tempo onde o processo de construção identitária ainda está em negociação estas dicotomias são compreensíveis – mas não creio que devemos nos deixar levar por ela. Gostaria, talvez, que a temática GLBTT/GLS mobilizasse tanto as obras da livraria quando subtemas relevantes a exemplo de literatura fantástica ou direito administrativo mobilizam.

Apenas uma lembrança. Um dos primeiros lugares onde encontrei livros com temática GLBTT de todos os tipos – histórica, filosófica, literária e erótica – foi à livraria Grandes Autores, que ficava em Ondina a menos de vinte metros do meu colégio. Depois da aula, corria pra lá e fazia minhas leituras clandestinas em pé na prateleira, morrendo de medo da próxima página de um romance gay e da chegada de um colega de sala. Mas foi nesta mesma prateleira que vi pela primeira vez obras como os devassos no paraíso de Trevisan, ou os tríbades galantes, fanchonos militantes de Torrão Filho. Quase dez anos atrás a livraria deu lugar a um banco do Brasil. Numa grande livraria ou sebo, nunca mais vi qualquer literatura ou estante gay. No máximo, uma de erotismo/sexualidade/sexologia. Agora eu vejo, e fico com minha cisma. O que mudou?

#2