O ano que eu visitei a mesma livraria toda semana: memória do armário de adolescente.

Gostaria de enterrar alguma coisa preciosa em todos os lugares onde fui feliz e, então, quando estiver velho, e feio, e triste, voltaria para desenterrar e recordar.

W. Waugh, Retorno a Bridshead

            Quando eu era adolescente – estou falando de 2003, 2004 – eu fui estudar num colégio grande, na orla atlântica de Salvador. Para minha família, foi uma mudança considerável, que envolvia ascensão social e a busca por um ensino de melhor qualidade. No começo, eu não desgostava do colégio. Meus problemas no ensino médio começariam a ficar mais fortes só no final daquele primeiro ano do colegial. Aos quinze anos recém-completos, acho que este foi o meu último período relativamente tranquilo da adolescência.

            Meus pais me deram cada vez mais autonomia. Eu pegava ônibus há uns anos, mas a partir dali meus horários e rotas passaram a ser mais flexíveis e sujeito a menos controle. Minha mãe ainda se dava ao trabalho de pegar meus irmãos mais novos na Escola, mas eu voltava mais tarde. As vezes de ônibus, algumas vezes andando. Eu gostava (ainda gosto) de caminhar. E detalhe: eu não tinha celular, então podia flanar sem que ninguém soubesse onde eu estava.

            Perto da minha escola, havia uma livraria enorme. Acho que era das maiores de Salvador, considerando que a Siciliano mal havia aparecido no Shopping Barra e Iguatemi. Eu era um leitor voraz, mas não conhecia o conceito de livraria-boutique, onde você se senta, folheia, lê e (às vezes) compra. Se você me falasse “livraria”, eu ia pensar num esquema entra-pede-compra-sai, como era na Distribuidora de Livros Salvador e na Civilização Brasileira. Sem sofás confortáveis, e com vendedores que estranhavam quando eu aparecia por lá sem comprar nada.

            Só que o meu primeiro contato com a livraria não foi como leitor. Veja, morar em Salvador implica em viver com sol e calor escaldantes na maior parte do ano. O ônibus para casa demorava, e o ponto perto da escola era cheio, fedorento, e sem bancos. O que eu fazia? Subia a escadinha do ponto para a livraria com uma camisa por cima do uniforme e ficava no geladinho do ar condicionado esperando passar o ônibus para o meu bairro.

            Só que com o passar do tempo, virou meu rolê-solitário de sábado, depois das provas. Eu chutava as questões de exatas e respondia correndo a de humanas, e ia para a livraria. Não podia comprar os livros, que eram (ligeiramente!) mais caros que os da saraiva, mas podia folhear.

            E foi lá que eu encontrei estes quadrinhos curiosos, e uns romances com umas capas instigantes! Rapazes bonitos e atléticos, abraçados com outros rapazes. Homens com barba e bigode beijando outros homens. Capas de livros com as cores do arco-íris. Pois é: a livraria tinha uma prateleira com obras relacionadas a comunidade LGBTI+. “Livro de viado”, diriam meus colegas ou meu pai e meus tios. Livros GLS, diriam alguns autores mais sensíveis e respeitosos.

            Eu já tinha consciência mais ou menos vagas que eu era gay. E eu sabia que homens e mulheres podiam se relacionar uns aos outros. Não por casais ou pessoas que eu conhecia, mas porque alguns livros que eu li – como Criação de Gore Vidal, ou Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, ou O Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas Bulfinch, ou As Brumas de Avalon – falavam do assunto. Não quero dizer que eu era nem sequer vagamente desconstruído ou aberto a possibilidades alternativas de vida, gênero e sexualidade. Eu queria ter uma namorada e lutava para seguir o script hetero, mas não resistia olhar qualquer colega sem camisa (o que era fácil, porque eu fazia judô) ou me excitar com aqueles quadrinhos e livros.

            O que eu li naquela época? Tenho certeza de que li qualquer coisa do Tom of Finland. Não eram as histórias de Kake, mas algum outro quadrinho erótico dele. Li um outro quadrinho estranho, que não sei o nome, de ficção científica, inspirada na civilização Inca e Asteca. Muita gente nua se pegando, mas entendi nada do enredo. Sei um livro que eu li, com certeza! O Devassos no Paraíso, do João Silvério Trevisan. Por amor as letras? Não, porque tinha fotos de homens pelados no meio do livro. Mas nem só de obras sensuais e de muito bom gosto meu rolê se constituía. Eu sei que li qualquer coisa de Caio Fernando Abreu, e um livro chamado Diário Memórias de um Garoto de Programa (primeira cena de sexo anal escrita que eu li, e me toquei de outros usos para xampu e condicionador). Certo, acho que meu rolê era basicamente com obras sensuais.

E foi lá que fui paquerado por outros homens das primeiras vezes. Eu respondia aos homens simpáticos que falavam comigo, mas não percebia sempre os convites implícitos – eu era muito ingênuo – e quando percebia, morria de medo das possibilidades implícitas. Afinal, alguém podia ver. As vendedoras. Meus colegas. Os livros. As paredes. Eu, e meu teatrinho de ser hetero. 

  Tenho lembrança de ter falado mais tempo com um rapaz pouco mais velho sobre literatura pop (ou seja, Harry Potter e Senhor dos Anéis). Ele era bonito e simpático. Fico na dúvida se já o tinha visto antes, quer pela distância no tempo, quer pela minha subjetividade que, hoje, tenta encontrar alguma grama de bom senso na minha cabeça ingênua de quinze anos. O que me lembro é que foi uma conversa legal. Sei que não deu nem e-mail nem telefone.

            Neste dia, por desgraça, um colega estava parado no geladinho do ar, e fez algumas insinuações. Eu parei de ir toda a semana até o final do ano letivo, e não apareci por lá por todas as férias. Como tomei gosto pelo ambiente descolado, passei a ir em outras livrarias, mas quem disse que achei estes livros interessantes? Que nada.

            O tempo passou. O novo ano começou. E a livraria virou um Banco do Brasil. Eu tinha de esperar no ponto, com meu coleguinha maldoso e o resto do bando. Nunca mais outros rapazes pararam para conversar meio mole comigo numa livraria, na frente de livros gays. E eu passei muito tempo sem pensar nisso. Porque, pela primeira vez, me dei conta do seguinte: sem partilhar das poucas referências de outras pessoas gays da minha idade afirma que tinha na época (como Sandy e Júnior, Beco da Off, Bate papo Uol) eu tinha descoberto que havia outras pessoas como eu, que amavam, escreviam, viviam, falavam.

            A vez seguinte que eu encontrei algum espaço do tipo foi muito tempo depois. Mas eu já tinha dado o tardio primeiro beijo com outro homem, e saído da Faculdade de Direito para o curso de História. Mas cada vez que eu passo por ali, eu penso no que poderia ter sido se, na semana seguinte, eu tivesse voltado à livraria de novo.

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