Stranger Things 4: Um comentário sobre Will, Eddie & o Fandom

Aviso: este texto contem spoilers sobre a 4ª temporada de Stranger Things

O final de Stranger Things foi de cortar o coração. Talvez porque a Netflix não tenha terminado a série no momento correto, a meu ver o final da terceira temporada. Me desculpe quem discorda, mas nunca fez sentido Hopper ter sobrevivido. Sem falar que o Mindflayer havia sido derrotado.

Mas, vamos lá. Outra temporada, com uma primeira parte excitante, e escolhas narrativas que deixaram os fãs furiosos. E uma segunda parte com momentos que causaram fúria do público. Vou me ater a dois casos em particular.

O primeiro é o de Will Byers. É triste que ele tenha sido tratado como um personagem desimportante, com pouco espaço na narrativa. Apesar de protagonizar uma das cenas mais emocionantes – quando ele praticamente sai do armário para Mike, falando sobre o papel deste como inspiração e coração do grupo – Will merecia mais atenção. Sim, apesar de boas séries (Heartstopper, Umbrella Academy) e bons filmes (Um Crus para o Natal), a Netflix ainda mergulha forte no queerbait. Contudo, cena é coerente com a experiência de jovens gays nos anos 1980. Eu fui um adolescente gay no armário nos anos 2000. Em todo meu tempo de escola, tive colegas afeminados ou de alguma maneira rebeldes de gênero em geral. Nenhum disse que era gay. Uma vez eu me referi a mim mesmo no feminino, e passei os últimos seis meses do colégio no inferno. Bully, agressões físicas, ameaças, isolamento social. Um inferno.

O problema está longe de ser o não-dito ali, mas sim no resto da narrativa. Will é um personagem ótimo, é triste que fique segurando a vela para o casal de Eleven e Mike, sem um arco próprio, não necessariamente com um namorado. O trabalho sobre Alan Turing. A construção da autovalorização e do orgulho. Tudo isso merecia espaço.

O segundo ponto é Eddie. A morte da personagem é trágica é sim, um tantinho gratuita. Inspirada num caso real, a narrativa deixou pouco espaço para a sobrevivência do mestre de RPG do Hellfire Club.

O arco dele merece algumas considerações. Em primeiro lugar, como pontua este texto, ele é um herói – fora do armário, independente da sexualidade. Verdadeira vaca profana numa cidade afundada até os fios dos cabelos num pânico moral absurdo contra minorias. O pânico moral, nas palavras de Gayle Rubin:

Os pânicos morais são o “momento político” do sexo, durante o qual atitudes difusas são canalizadas na forma de ação política, e, a partir disso, de transformação social […] Dado o obscurecimento característico da sexualidade nas sociedades ocidentais, as guerras que surgem em torno dela são muitas vezes combatidas de forma indireta, visando a falsos objetivos, sendo conduzidas com uma ira mal direcionada e caráter alta e intensamente simbólico[i].

É interessante lembrar das propagandas no final da temporada 3, falando dos perigos de RPG’s e de drogas e da propaganda sobre Horror in the Heartland, do programa Cutting Edge – no que deve ser o pior do estilo mídia marrom, que o pai de Mike assiste.

Eddie não só anda com os longos cabelos estilo Robert Plant, falando de metal e desafiando convenções de uma sociedade intensamente paroquial, conservadora, cristã e hipócrita, como ainda propicia um porto seguro para pessoas com experiências dissidentes. De gênero, inclusive, pois o lenço preto que ele leva no bolso faz pensar num código de reconhecimento entre homens gays nos anos 1970 e 1980. No provocativo Hellfire Club, eles estão reunidos e se apoiando mutuamente contra os moralistas, fundamentalistas e, logo, terroristas cristãos de Hawkings. Tocam numa banda, saem juntos, tem uma identidade de grupo comum. E o bem estar deste grupo desconcerta a  famosa “gente de bem” como o atleta perigoso, fundamentalista cristão e assassino Jason, que é o responsável pelo que aconteceu com Max e a vitória pírrica dos heróis. O que me incomoda no arco de Eddie é o fato de ele traficar drogas. Não por uma razão moral. Simplesmente, tal como com Will, são muitas aberturas para a personagem que não se resolvem a contento.

Sim, a morre de Eddie é gratuita; e sim, isso me irrita muito como um fã. Ao mesmo tempo, honestamente eu não acho que o fandom, veria as qualidades de Eddie se não fosse a morte dele. Series e filmes tem uma quantidade de personagens com o tipo de heroísmo sem fama de Eddie. Gente que abriga, defende, incentiva, guia – e faz isso tão bem que são deixados de lado muitas vezes. Não creio que o papel fundamental de Eddie garantindo alento e uma sociabilidade segura para os dissidentes da escola seria valorizado do mesmo jeito se ele não tivesse morrido. E digo isso porque outro personagem da história vem sendo ignorado a muito tempo com qualidades parecidas:  Murray. Águia careca. O estranho solteirão que ajudou Nancy a fazer alguma justiça a Barb. Que foi instrumental no fechamento do portal. Que entrou na cortina de ferro (!!!!!!) Para ajudar Joyce e Hopper. E que, claro, não gera engajamento nenhum nas redes sociais.

Acho que isso é comum em pessoas que propiciam espaços seguros. Suas qualidades só aparecem na medida em que são perdidas. Só valorizaremos Murray, como Eddie, quando ele morrer. Aí sim o grupo vai notar a profunda lealdade dele com cada integrante, de Johnathan “my duuuuude” a Jim Hopper. E, mesmo assim, duvido que os fãs zenials se aborreçam muito com a morte de um careca de meia idade.

O caso de Lucas é ilustrativo da atitude de uma parte das minorias com estes espaços de segurança. Inseguro, ele procura qualquer oportunidade para se tornar parte da norma. Quando pode, se une ao clube de basquete, e seus amigos do Hellfire se tornam pura e simples weirdos. E, infelizmente, os Lucas são mais comuns do que os Dustins e Mikes.

Sou casado com uma pessoa que propicia estes espaços. A quantidade de vezes em que as pessoas simplesmente deixaram de lado o projeto dele em busca de novos espaços é enorme. E isso é normal; desagradável e desencorajador, mas normal. Pior é sair falando mal, com críticas de que estes espaços “são pequenos, inúteis e não ajudam a lutar contra a LGBTfobia”.

Então, para o fandom, acho que a lição é outra. Valorize os seus espaços seguros e quem te ajudou e ajuda com isso agora. Todos são heroicos. Nem todos são heróis como Eddie Munson, porque nem todas as histórias viram séries da Netflix. O mundo primário ainda está aqui: precisamos de vocês.


[i] RUBIN, Gayle. Pensando o sexo. In:_____. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu, 2017, p. 109.

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