Um dos ditados que mais me agrada é que “a grama do vizinho é mais verde”. Em certa medida, acredito especialmente nessa expressão quando considerada na ótica da vivência LGBT contemporânea. O Brasil, certamente, não é o melhor dos mundos. Mas lugares que parecem a meca da diversidade sexual e de gênero também possuem seu lado sombrio. Na Europa, por exemplo, a aceitação de pessoas LGBT nas últimas décadas e a emergência de legislação inclusiva tem sido acompanhada de uma resistência de setores conservadores da sociedade. Em certos casos, esta tensão entre progressismo e conservadorismo revela as mazelas que parecem mais adequadas ao mundo subdesenvolvido do que ao primeiro mundo.
O filme Kinky Boots trabalha com o encontro de duas mazelas do mundo contemporâneo, e as soluções inovadoras que precisam ser dadas para problemas aparentemente sem qualquer solução. Por um lado, a fábrica de sapatos herdada por Charlie Price é demasiado cara e artesanal em tempos de produção em série e barata que invadem o mercado e colocam o operários nas ruas. Por outro, a existência de maior tolerância social em relação a pessoas LGBT permite não apenas a criação de espaços de convivência desenhados segundo as aspirações deste grupo social, como também permite a emergência de novas demandas de serviços e produtos especialmente desenhados segundo as especificações deste nicho de mercado.
Assim, quando Charlie Price (Joel Edgerton) encontra a drag queen Lola ( Chiwetel Ejiofor) em Londres com a proposta de desenhar, segundo ele mesmo, “botas para mulheres que são homens”, os dois universos que o mundo capitalista marginalizou – operários caros e superqualificados e empresários de médio porte e os sub-consumidores LGBT, a sobrevivência de ambos depende de concessões que precisam ser feitas. Assim, vemos que Lola é muito senhora de seus gostos e do produto desenhado especialmente para drags que Price deveria produzir: glamour e materiais caros, mas com qualidade e resistência para a vigorosa constituição corporal de drag queens como ela. Para tanto, era preciso que ela mesma se deslocasse a Northamptom para desenhar uma coleção inteiramente nova, saindo do nicho do showbiz para uma posição de destaque e visibilidade dentro da fábrica. Por seu turno, Lola percebe que não é possível viver no mundo fechado de um cabaré, evitando conflitos e fugindo de olhares de reprovação. É preciso lutar, e combater preconceitos na raiz, e quando isso acontece, ela encontra ao lado de manifestações terrivelmente cruéis de desrespeito, a plena aceitação. É o caso do momento no qual vemos Lola preocupada, todos os dias, em se produzir para que a idosa senhoria não fique chocada, apenas descobrir pouco depois que a preocupação da idosa era simples: como deixar a tampa do vaso.
O longa do diretor Julian Jarrold não propõe soluções fáceis para os personagens. Existe uma dimensão humana, que é representada pela vitória sobre os próprios preconceitos, e a necessidade de repensar o lugar do outro menos como uma ameaça as próprias certezas bem estabelecidas, dadas pelas imposições conservadoras do capitalismo neoliberal e mais como um potencial para novas associações e para acolher a diferença. Conviver em lugar de segregar. Apesar do humor, evidente em momentos como quando Charlie Price tenta se redimir de suas palavras preconceituosas para Lola literalmente “vestindo” os atributos dela – e falhando miseravelmente em se equilibrar – a discussão é muito séria: no mundo que assiste passivo ao desagregar de velhos direitos dos trabalhadores, cada vez mais empurrados para posições de precariedade, é preciso repensar o lugar de todos os excluídos e dos preconceitos que separam pessoas. Na prática, todos são bem mais parecidos do que desejam admitir. Neste sentido, um dos momentos mais significativos do filme é quando Lola desiste de uma queda de braços contra o operário Dan. Ao ser questionada sobre a derrota, ela responde simplesmente que detestaria ver que o outro havia perdido o respeito e o auto-respeito… coisa da qual ela certamente entendia muito bem.
Coordenador do Núcleo UniSex, escreve sobre cultura LGBTQIA+, comportamento digital e saúde mental. Atua como psicoterapeuta afirmativo e de casais/famílias diversas em neuropsipro.com.
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