A pandemia e seus impactos entre os LGBTQI+: um abraço a um amigo e uma opinião.

para um amigo querido, que não ouso dizer o nome


Outro dia estava conversando com um amigo queridíssimo. Falamos pelas redes sociais, nestes tempos de quarentena contra o COVID-19. Mais do que em tempos normais, inclusive. Talvez uma forma de aplacarmos a distância — nos nós víamos com frequência.
Nossa amizade tem uma história bonita. Conheci ele ainda nos tempos de graduação, quando participamos da cadeira introdutória do curso de Ciências Sociais. Eu era do curso de História, e ele viria a se licenciar na mesma área alguns anos depois. Do contato pessoal, passamos ao virtual, pelo Facebook; e, mais tarde, eu o trouxe para o cineclube sobre sexualidade de que participo. É um sujeito encantador. Engraçado e culto, elegante; um excelente cozinheiro (apesar de me dever há anos um almoço). Um dos maiores profissionais que já conheci, com observações muito originais sobre a área de História. E é um homem gay.
Meu amigo não é da capital. Os pais ainda vivem no interior, e mantém uma residência aqui por conta dos estudos dos filhos. Para as pessoas que vivem com ele — da mesma faixa etária — meu amigo é assumidamente um homem gay. Orgulhoso e militante, do tipo que participa de passeatas, beija o namorado na praia, e não se incomoda e absoluto em paquerar.
Mas a realidade no interior é diferente. E o COVID-19 levou meu amigo a optar por se juntar aos pais. Só que os pais são religiosos, e não sabem da orientação sexual do filho, o que implica num retorno — esperemos que temporário — para o armário. E nos leva a refletir sobre as condições de invisibilidade da comunidade LGBTQI+ no Brasil durante a epidemia de COVID-19.
Se existem violências simbólicas e silenciamentos, há o caso também de violências físicas. Segundo reportagem recente do Globo, com dados da Antra aumentou em 49% a agressão a pessoas trans e travestis entre janeiro e abril deste ano (1). Neste contexto, o desinteresse do governo do atual presidente, que tem na produção da morte como elemento central de sua caótica “agenda” repercute mais duramente dentro deste segmento da comunidade LGBTQI+. A ABRASCO — Associação Brasileira de Saúde Coletiva — divulgou, inclusive, um documento apontando a necessidade de medidas interdisciplinares para dar conta dos dilemas da comunidade LGBTQI+ durante a pandemia, como já havia feito com outros grupos vulneráveis (2). Quando cruzado com outras experiências, como a agressão a mulher, a de precariedade no emprego em tempos da gig economy neoliberal, ou o racismo institucional, emerge um quadro ainda mais tenebroso (3).
Voltando ao meu amigo querido, este texto é uma forma de dizer que jamais vou soltá-lo. Que em mais de uma medida, as dores que ele sente são as minhas dores também, por amizade, mas porque somos membros da mesma comunidade. E me leva a pensar, otimista incorrigível que eu sou (mea culpa, mea máxima culpa) que seria um dos caminhos possíveis para a comunidade LGBTQI+, especialmente para as pessoas que, de alguma maneira rejeitam a militância política dentro da comunidade, acreditam numa cidadania viabilizada pelo consumo, ou vivem num cercadinho de privilégios. A pandemia, com o condão de mostrar as consequências deste desejo de se manter à parte da parte politizada e atuante da comunidade LGBTQI+ — como se a rejeição da política fosse um fator positivo, e não a fonte de muitos de muitos dos impasses e adversidades que a sociedade brasileira passa na contemporaneidade.
Pode parecer um pensamento ingênuo ou contraintuitivo. “A minha presença não vai mudar nada”. E talvez seja bobagem da minha parte, e talvez não mude. Contudo, este tipo de mobilização já ocorreu em outros momentos, como o “Fora Feliciano” de 2014, ou com o “Ele Não” em 2018. A ausência de ganhos imediatos não impede outras conquistas no longo prazo. Decisões judiciais, como a criminalização recente da LGBTQIfobia não estão descoladas da capacidade de fazer pressão que os movimentos sociais conseguem operar — para nossa vantagem ou desvantagem. Na pior das hipóteses, você perderia, só que como parte de um grupo de pessoas lutando em nome da um futuro melhor. Na melhor… quem sabe de um presente melhor.
Nossa comunidade possui contradições. A ação coletiva não é fácil, nem simples. Do Lampião da Esquina para cá, por exemplo, são pouco mais de quarenta anos de atuação política. Os movimentos negros no Brasil possuem mais de um século de atuação; os movimentos feministas e/ou de afirmação de mulheres, idem. E esta longa história não implicou sempre em vitórias, nem sequer em ação unificada em todos os momentos. Mas forçou o debate de um extenso conjunto de pautas, provocou mudanças na legislação e criou condições para a luta por uma sociedade menos injusta e mais inclusiva.

Notas:


(1) ANTUNES, Leida. Assassinatos de mulheres trans e travestis sobem 13% durante isolamento social, diz pesquisa. O Globo, 06/05/2020. In: https://oglobo.globo.com/celina/assassinatos-de-mulheres-trans-travestis-sobem-13-durante-isolamento-social-diz-pesquisa-24411415. Acesso em 06/05/2019.
(2) A recomendação pode ser encontrada neste link: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/consideracoes-da-abrasco-sobre-a-saude-da-populacao-lgbti-no-contexto-da-epidemia-de-covid-19/47257/
(3) PAMPLONA, Nicola. 10% mais ricos ficam com 43% da renda nacional, diz IBGE. In: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/10-mais-ricos-ficam-com-43-da-renda-nacional-diz-ibge.shtml, 06 de mai de 2109. e AMÂNCIO, Thiago; MARIANI, Daniel. YUKINARI, Diana. Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena por coronavírus. In: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarentena-por-coronavirus.shtml. 15 de abril de 2020.
Uma reflexão mais adensada foge ao escopo deste texto, mas a leitora ou leitor interessado no tema da pode consultar os verbetes do Violências, Dominação e Patriarcado — Teorias do Dicionário Crítico do Feminismo: HIRATA el all. Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. No caso específico da pandemia, artigos da área de saúde Ver: MARQUES et all. A violência contra a mulher, crianças e adolescentes em tempo de pandemia pela covid-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. In:https://www.scielosp.org/pdf/csp/2020.v36n4/e00074420/pt. Acesso em 06 de maio de 2019. Paper com dados preliminares.
Sobre a relação entre o COVID-19 e aumentos dos casos de racismo, ver: BATISTA, Fabiana. Homens negros relatam casos de racismo ao utilizar máscaras na rua. In: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/08/homens-negros-relatam-casos-de-racismo-por-utilizar-mascaras-na-rua.htm. Acesso em 08 de maio de 2020.

3 Comentários em A pandemia e seus impactos entre os LGBTQI+: um abraço a um amigo e uma opinião.

  1. Nada contra quem quer ser militante, mas que cada pessoa seja militante, mediante superações do dia a dia! Outra questão: será que somos minoria? Quantos de nós já ficamos com amigos ou colegas, socialmente, heteronormativos? Assim que a vida foi voltando ao normal, um desses heteronormativos, começou a caminhar comigo, dizendo que o home office estremeceu a relação dele com a (suposta) esposa, que não imaginaria reparando pernas peludas. Soube “me posicionar” evitando demonstrar atração que aquelas caminhadas me despertavam nele. Até que foi ele que me convidou a transar e, perplexo, disse “como conseguiu segurar o relaxamento que a presença dele proporcionava ao esfincter”! Ai eu disse que sabia separar razão, emoção e atração! Não é o homossexual que deve, sempre, ter iniciativa, ainda mais num “enredo” de “macho alfa carente”! Felizmente, ele foi humilde em reconhecer que mesmo que não digam mas a feminilidade de um homem “resolvido” e Independente, causa mais expectativa, mas que sem qualquer pudor, me mostrava que a ereção dele era por tudo que encantou ele: caminhadas, conversa e carinho que tive nos momentos íntimos com ele!

  2. saudações Observador, obrigado pelo seu comentário e pela partilha de sua experiência. Espero que esteja bem.

    Sobre minorias, penso que a expressão não deve ser usada no sentido numérico, mas sim como ferramenta de reflexão. Neste sentido, minorias podem indicar de experiências compartilhadas, em geral violentas, por um grupo expressivo de pessoas em função da lgbtfobia, e que tornam difícil ou inviável o acesso inclusive a direitos básicos. Em muitos casos que acompanhei, a pandemia aprofundou muito isto.

    E para pessoas LGBT que estão fora da política, talvez a pandemia tenha mostrado a importância de se implicar nisso. O cercadinho de privilégios o famosos ‘ser discreto e fora do meio’ não impedem violências. Em outras palavras: adianta muito pouco achar que se pode fugir da LGBTfobia numa sociedade que se organizou e ainda se organiza com base neste tipo de discriminação, entende?

    Sobre a questão de militância, bom, este é um site militante. No quotidiano e fora dele também.

  3. Toda sexualidade não resolvida ela “desenvolve” patologia, em especial, psicopatia!E o homossexual, em especial o cisgenero, assim como as mulheres, não estamos livres, de conhecermos homens, que buscam pela sedução nos “usar”! Meu último chefe temia eu ter ido trabalhar com ele para ser chefe (ou seja se auto atestou Incapaz de satisfazer outro homem), ai buscou me “isolar” no setor e, pensando que me causaria frisson, levantava a camisa dele próximo de mim e colegas próximos! A sós, último dia de trabalho num ano, sugeri o ano novo ser nosso, ficou bem sério, sem aproveitar a ocasião para um ficar! Com determinação e sutileza a gente vai conseguindo, mostrar, que o conjugal é o que importa, com parceiro (a)!

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