Não podemos nos dar o luxo de votar de forma inconsciente. De não pensar um pouco antes de apertar os dedos na urna eletrônica. De refletir, cuidadosamente, no candidato que escolhemos. Não podemos ser um eleitorado invisível, estatístico do Datafolha e do Ibope. Seria um luxo demasiado caro para os homossexuais brasileiros.
Hesitei muito em começar a escrever esta crônica, e mais ainda na publicação. Lidar com política e com as opções políticas de cada um não é nem um pouco fácil. Por um lado, não é o mais popular dos temas fora de alguns lugares comuns (pérolas de Feliciano ou alguma decisão judicial); por outro, existem interesses de natureza diversa que governam a escolha de um político ou de outro, independente da orientação sexual e da identidade, gay ou não.
Contudo, acho necessário sinalizar a importância que a participação na política, institucional ou não, tem para os cidadãos LGBTT como um todo. Por uma razão muito simples: ainda é necessário lutar, arduamente e de forma cotidiana para sobreviver num contexto social onde a homofobia é constante – seja de forma velada, seja de forma explícita. Os políticos homofóbicos, sobretudo os da bancada evangélica/religiosa e seus apaniguados, ao lado dos apregoadores da governabilidade, nesta conjuntura são verdadeiros inimigos da plena cidadania para sujeitos LGBTT. E inadvertidamente, o voto destes mesmos cidadãos frequentemente podem eleger políticos homofóbicos.
Neste sentido, dois episódios são sintomáticos, um na política nacional e outro na política municipal. O primeiro diz respeito às polêmicas em torno do licenciamento de Marta Suplicy (PT-SP), relatota do PLC 122 entre 2009 e 2012, o famoso projeto que dispõe sobre a criminalização da homofobia. Ao ser indicada ministra da cultura, Marta Suplicy cedeu a vaga ao suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP), católico praticante e abertamente contra o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a legislação de que trata o projeto. Para desespero do movimento LGBTT em todo o país, prometeu inclusive militar contra o projeto, em entrevistas amplamente divulgadas pela mídia:
“Vou seguir sempre as posições da Igreja Católica nas votações. Para mim homem é homem e mulher é mulher. Também sou contrário ao aborto e à eutanásia”, afirmou nesta quarta-feira (12) o vereador paulistano, após uma sessão na Câmara Municipal marcada pelas homenagens dos colegas ao novo senador por São Paulo.” [1]
Tal agenda política causou um enorme mal-estar entre os eleitores da senadora Marta Suplicy, tida como tradicionalmente alinhada com o movimento LGBTT. Parecia absurdo que a saída de uma aliada, com trânsito no executivo e no legislativo desse lugar a um retrocesso de tal ordem: afinal, assumiu a cadeira um parlamentar, que, num estado que se intitula laico, promete votar de acordo a suas convicções religiosas, e não ao interesse comum e menos ainda de grupos minoritários. Mas o mais absurdo é que as centenas de milhares de votos recebidos por Marta Suplicy agora são representados por um político que está, evidentemente, em total descompasso com a agenda política pró-direitos LGBTT da senadora. Afinal, os dois são membros de partidos com agendas opostas, já que o PT defende algum tipo de reformismo social, enquanto o PR assume neste aspecto uma orientação conservadora.[2] A lógica que prevaleceu, pois, não foi em torno da coerência de projetos, ou minimamente, de princípios: mas em torno da governabilidade nas casas legislativas federais, representada pela chapa entre PT e PR. A lição que fica para o eleitor LGBTT é a de vender seu voto muito caro, e sabendo claramente que ao optar por um aliado histórico, pode-se estar elegendo um inimigo futuro da mesma chapa.
A questão de um suplente com um conjunto de propostas totalmente oposto ao de Marta Suplicy e a de uma parte de seu eleitorado foi apenas um dos problemas naquele contexto. Havia outro, ainda mais grave. Com a relatoria em aberto, qualquer senador poderia se candidatar para a vaga, o que de fato ocorreu: ninguém menos que Magno Malta (PR-ES) pediu para assumir o cargo.[3] Não é preciso recuperar o histórico do senador para saber que a relatoria de um projeto desta magnitude nas mãos de um dos líderes da bancada evangélica teria consequências perniciosas para os defensores da lei. Depois de uma reação da sociedade civil, a relatoria terminou nas mãos do senador Paulo Paim (PT-RS), e segue em tramitação. Ainda assim, durante três meses (setembro-dezembro de 2012) a questão ficou em aberto, e o governo federal demonstrou que os direitos LGBTT certamente não entrar na hierarquia de prioridades. Enquanto na indicação de outros cargos e relatorias (entendidos como mais nobres – ou mais úteis) envolvem grande cuidado na indicação de seu ocupante, a questão aqui parece ter sido tratada de forma tosca, tacanha, sem inclusive algum espaço para que, antes do licenciamento, a senadora passasse a relatoria para um politico pró-direitos LGBTT.
Mas temos outro caso bastante relevante na política estadual em Salvador. O deputado estadual Pastor Sargento Isidório filiado ao PSB (partido de esquerda com uma agenda de reformismo social e ao menos, simpatia pelos direitos LGBTT), provocou mal estar na assembleia legislativa e na câmara de vereadores ao usar a tribuna para a defesa da cura gay e das posições homofóbicas e racistas do deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP).[4] Isto gerou uma situação bastante complicada, já que apesar de o parlamentar ter se colocado num conflito quase sem conciliação com o programa do partido, que é de apoio aos direitos LGBTT, continou filiado ao PSB até meados de outubro de 2013, quando se filiou ao PSC sem a perda do mandato.
É necessário pensar, que durante este período votar num candidato do PSB, digamos, ao governo do Estado ou ao senado federal poderia significar dar espaço e trânsito a figuras como a do deputado pastor Sargento Isidório não apenas nos debates do legislativo, ou junto ao seu eleitorado: mas sim, inclusive, a possibilidade de intervir negativamente nas tímidas políticas estaduais para o segmento LGBTT. O voto, que deveria justamente ir para um partido minimamente alinhado com uma agenda pró-direitos, neste caso, serviria para eleger um político não apenas contrário, mas abertamente militante contra direitos a exemplo do casamento gay e da criminalização da homofobia. Com possibilidade, inclusive, de integrar comissões executivas que determinam políticas para este segmento no estado. Em suma: mesmo que na querela entre Isidório e o PSB o partido tenha mantido alguma coerência entre projetos pró direitos LGBTT e ações concretas, esta talvez seja resultado muito mais da importância atribuída as negociações políticas do que a estes direitos.
Um caso similar desponta nacionalmente neste momento, envolvendo também o PSB representado pelo seu candidato a presidência, Eduardo Campos (PSB-PE) e a ex-senadora Marina Silva, figura de proa do movimento político Rede Sustentabilidade – e abertamente contra o casamento LGBTT – embora a favor de algum tipo de união civil.[5] Se votar num presidente que vem de um partido ao menos simpático a uma agenda pró-direitos, a vice-presidente neste caso parece ser um problema – ou ao menos, um elemento a ser levado em consideração na equação. Afinal, num país com o histórico da eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, quando o segundo assumiu a presidência pela morte do primeiro, ou Collor/Itamar Franco, quando o segundo assumiu a presidência pela renúncia do primeiro, parece razoável refletir sobre o papel dos vice-presidentes, mesmo que o bom-senso aponte para uma função mais cerimonial que efetiva. Vale ressaltar, no caso de Eduardo Campos/Marina Silva que tanto a cabeça de chapa não está claramente definida, como as intenções de voto em Marina Silva são maiores que as em Eduardo Campos – o que torna a suposta vice incomodamente capitalizada para negociar o que é prioritário, o que é importante e o que é meramente perfumaria, inclusive, dentro da lógica que foi demonstrada acima.
Não se trata, de maneira nenhuma, de fazer proselitismo de um ou outro partido: mas de pesar de forma adequada quais políticos que merecem os votos e quais não merecem. A equação não é simples: frequentemente, votar num candidato é votar numa chapa com políticos em completa ignorância dos direitos LGBTT, quando não em militância aberta e constante contra estes direitos. Devemos pesar muito bem e de forma consciente o menor dos males: votar num candidato alinhado com os direitos e políticas públicas LGBTT, mas sem uma chapa com um grande partido; ou votar num candidato alinhado, mas parte de uma chapa que pode transformar os direitos LGBTT numa questão de menor importância.
Cabe ressaltar, aqui, uma iniciativa interessante: é a cartilha LGBTT, que presta um serviço inestimável de mapear, na quase totalidade dos partidos nacionais, como se posicionam em relação aos interesses do segmento LGBTT, quais são as chapas, integrantes simpáticos ou hostis, etc. Disponível neste link.
[1] a questão teve ampla divulgação nos meios de comunicação nacionais e locais, a exemplo de: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2012/09/suplente-de-marta-e-contra-seu-projeto-sobre-uniao-gay.html
[2] http://www.partidodarepublica.org.br/partido/historia_do_pr.html. Não farei nesta crônica uma digressão sobre o tema do conservadorismo contido em certas fórmulas. Apenas noto que, se o limite da liberdade individual é a natureza, basta inscrever afetividades divergentes como não naturais para manter o status quo, como o senador Magno Malta fez em seu site pessoal: http://www.magnomalta.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2097:magno-malta-continua-contra-casamento-entre-homossexuais&catid=27:outras-notas&Itemid=45
[4] Entrevista pode ser consultada neste link: http:// www.bahianoticias.com.br /principal/entrevista /300-pastor-sargento-isidorio.html
[5] a rejeição de Marina Silva pelo casamento gay foi amplamente divulgada em diversos meios de comunicação: http://www.estadao.com.br/ noticias/nacional ,marina-se-declara -contra-casamento-gay,560871,0.htm