Eu vi um jovem gracioso na mesquita
Lindo como a lua quando ela aparece
Aqueles que o vêem curvando-se para orar dizem:
“Todos os meus desejos são para que ele se prostre ainda mais”.
(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)
TORRÃO FILHO, Amílcar Torrão. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.
Uma das obras de divulgação mais interessantes sobre a temática LGBTT ao longo da história. Creio que esta é a melhor definição para este interessante trabalho de Amílcar Torrão Filho. Obra de síntese, não deixa de dar conta de alguns períodos que despertam mais interesse de curiosos sobre o tema, como o mundo greco-romano, ou a época e atuação das inquisições. Isto sem descuidar, em muitos momentos, de detalhes que são desconhecidos da maioria dos leitores brasileiros sobre o tema, como a primeira vaga do movimento de direitos civil LGBTT sob Magnus Hirschfeld, ou a tolerância do homoerotismo pelo islã no al-Andalus.
Os capítulos acompanham aquilo que se convencionou chamar de “grande narrativa” da história ocidental, indo da Babilônia a Grécia antiga, e centrando posteriormente sua análise, sobretudo, no mundo europeu e colonial. Acompanhando hora a vida de homossexuais que fizeram história, ou de personagens que tiveram alguma relação – como legisladores, médicos, políticos, etc. – Torrão Filho apresenta o tema com um texto leve e bem escrito, mas rigoroso e bem informado dentro das possibilidades de pesquisa do autor.
Os primeiros quatro capítulos quatro capítulos da obra focam a antiguidade, a idade média, o renascimento e a idade moderna. Este constitui, para fins desta análise, o “primeiro bloco do trabalho”, que é o mais interessante, por conter informações que podem ser surpreendentes para pessoas que estão fora da academia ou dos gay and lesbian studies. Assim, no capítulo sobre o medievo, descobrimos que o Al Andalus tinha não apenas uma produção de poesia homoerótica extremamente vasta e bastante explícita, como igualmente um grau de tolerância muito grande para com relações homoeróticas. Este lado pouco conhecido da história do islamismo ajuda a desconstruir um pouco a noção de que a homofobia e homossexualidade são invariantes culturais, ou que toda religião monoteísta é homofóbica: a relação destas com o homoerotismo variou muito ao longo do tempo e do espaço, como o autor procurou demonstrar.
Os capítulos do segundo bloco, que tratam do mundo contemporâneo, se filiam mais diretamente a proposta do autor de centrar a análise nos homossexuais que fizeram história, de Byron a Lorca, passando por Oscar Wilde, e sem esquecer os horrores do triângulo Rosa nazista, o autor faz uma análise que se tem uma falha é a brevidade. Obra de síntese, capítulos maiores seriam um fator desmotivador para um público mais amplo de leitores.
Os pontos de maior interesse desta segunda parte são o capítulo sobre o século XIX, no qual o autor lembra da importância de autores como Ulrichs ou Karól Maria Benkert, com os quais aparecem, respectivamente, os termos uranista e homossexual; e Magnus Hirschfeld, talvez o mais importante representante da primeira vaga dos direitos civis dos homossexuais (LAURITSEN & THORSTAD, 1874, p. 9-17) – embora Torrão Filho destaque muito mais a famosa petição para descriminalização da homossexualidade do Código Criminal do Reich.
O terceiro bloco trata, num único capítulo, do que se poderia chamar de história da homossexualidade no Brasil. Um balanço bastante equilibrado, seu autor aqui comete alguns pequenos deslizes. Primeiro, fica pouco claro se a atuação da inquisição em terras brasileiras era limitada a visitação, ou se havia algum tipo de estrutura montada para o trabalho do Santo Ofício – como de fato o era, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, com os comissários e familiares do Santo Ofício (MOTT, 2010, p. 43-62). O maior problema, porém, é o XIX: o século que viu o surgimento dos termos “homossexualidade” e “homossexualismo” não apenas na Europa como no Brasil, por meio das teses das faculdades de medicina (TREVISAN, 2011m 171-185) merecia maiores detalhes.
O último bloco, também com um único capítulo sobre a relação entre homossexualidade e cristianismo. Um dos pontos altos da obra, senão pela análise das obras, por desmontar alguns dos argumentos que sustentariam a homofobia das igrejas cristãs. Citando a obra de teologia do padre Helminiak, com seu famoso O que a bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, o autor faz o precioso trabalho de mostrar como uma leitura supostamente literal – mas, na prática, seletiva e descontextualizada – embasa os argumentos em torno do pecado de Sodoma, e da homossexualidade como uma abominação. Por fim, cita a obra Same sex unions in premodern Europe, da autoria de John Boswell. Sem negar a polêmica, o autor mostra como Boswell defendeu, com base em documentos de uniões entre homens, que a Igreja católica havia apoiado uniões entre pessoas do mesmo sexo em seus primórdios. Num contexto brasileiro como o atual, onde a bancada religiosa cresce com base num discurso homofóbico, este capítulo desmonta a própria argumentação dos detratores de direitos LGBTT.
Referências:
MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição & Sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010. 293 p.
LAURITSEN, John; THORSTAD, David. The early homossexual rights movement (1864-1935). NY: Times Change press, 1974. 94 p.
TREVISAN, João Silvério. Devassos nos paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2011. 586 p.